quarta-feira, 4 de março de 2009

As coisas como elas pensam que são

A noite decadente, a rua vazia, as fachadas imundas e a ausência som naquele pedaço mórbido de mundo. O vento passava, levando consigo uma caixa de papelão vazia. As estrelas brilhavam indiferentes aos mundos que giravam e o brilho morno, vazio e egocêntrico era belo. O princípio de chuva dava o tom noir que faltava.

A rua, se pudesse ter sentimentos, poderia muito bem sentir-se inferiorizada, caso pudesse contemplar o céu daquela noite. As estrelas ainda apareciam, mesmo sobre as nuvens que os ventos traziam.

Se as estrelas tivessem sentimentos, nem pena poderiam sentir da rua, pois ela era tão pequena e insignificante que não poderia ser vista lá do alto.

Se a caixa de papelão pudesse pensar, provavelmente diria que era lamentável alguém como ela ter que passar por aquela situação (de ser carregada pelo vento numa rua decadente) e que sortuda mesmo era a rua, pois ventinho nenhum poderia levá-la dali.

Se o vento fosse dotado de um cérebro pensante, ele reclamaria de ter que carregar uma caixa tão vazia e sem utilidade nenhuma, que na próxima chuva poderia ser destruída.

Se a chuva, que chegou lá de repente, pudesse dizer algo, talvez reclamasse do vento, que estava lhe impedindo de molhar uniformente toda a rua e ficaria chateada de destruir a pobre caixa, afinal, o vento não deveria ter levado a caixa, agora já falecida, para lá. E o vento, ainda por cima, nem se compadeceu de levar a indefesa caixa para alguma marquise segura, onde ela não teria que ser destruída.

Se a marquise fosse um objeto dotado de sentimentos, ela seguramente reclamaria de como aquela chuva desgastava a sua pintura nova e de como aquele vento balançava desconfortavelmente o letreiro que estava sobre si. Afinal, eles deveriam ter cuidado com ela, pois era a única coisa apresentável naquela ruazinha mequetrefe.

Se a rua pudesse dar ouvidos àquelas reclamações diria que ela era a única que podia reclamar, pois era a única que era pisoteada todos os dias.

A chuva, o vento, a marquise e a caixa de papelão (se estivesse viva) diriam que a rua reclama à toa, pois o que era uns pisões para quem, respectivamente: toda vez que dava as caras, alguém reclamava; toda vez que aparecia sempre levava de carona alguns objetos fujões, como chapéus e documentos importantes, sempre ouvindo palavrões, como se o culpado fosse ele e não os objetos em si; toda dia era atacada por excremento fecais de passarinhos e, durante a noite, era obrigada a abrigar todo o tipo de gente indesejável, como bêbados e mendigos; ou ainda era obrigada a levar objetos importantes e depois era sempre descartada, como se fosse inútil.

A rua, se pudesse, teria dado risada e dito que aquilo tudo era uma grande besteira e que todos os ali presentes (incluindo uma lata de lixo, um guarda-chuva perdido e todas as outras marquises de lojas, que ainda não haviam se manifestado) deveriam agradecer, pois nenhum deles, além de ser pisoteado, tinham que levar escarrões e ter chicletes cuspidos em si todos os dias e, muito menos, tinham que ouvir reclamações sobre o seu estado de algum motorista mais esquentadinho.

Antes que a lata de lixo pudesse dizer alguma coisa, a estrela (se pudesse ouvir essa discussão) diria que todos eram bobos e reclamavam sem ter motivo e ela era a única ali, que realmente tinha algo do que reclamar, pois, vivia sozinha e distante de tudo!

Neste momento, então, todos os outros (incluindo a lata de lixo, o guarda-chuva e todas as outras marquises) se uniriam num coro e diriam que a estrela, além de ser fútil, era mimada e prepotente, pois além de ser bela e admirada por todos, ela não tinha que agüentar: pisões; cara feia ao vê-la; xingões; excrementos fecais e elementos indesejáveis sob si; ser descartada após todo o seu trabalho duro; e reclamações de motoristas mais esquentadinhos.

A estrela talvez, então, finalmente percebesse que sua vida, era, de fato, muito boa e então, deixasse aquela discussão, deixando todos os outros perplexos com sua futilidade e alienação aos problemas alheios.

Os outros prosseguiriam na discussão, enquanto à poucas quadras dali, um mendigo se lamentaria de que o vento havia levado sua caixa de papelão, que fazia às vezes de cobertor.

Nesse mesmo instante, uma velha senhora levantaria-se de sua cama para fechar a janela que o vento tinha aberto e, ao olhar para a floreira na beira da janela, ia encontrar um anel que procurara durante dias.

Há poucos quilômetros dali, um agricultor estaria agradecendo pela chuva, que a muito fazia falta.

Em um outro estado, um jovem olharia para um pedaço de papel, que conteria o nome de um rua a qual ele nunca tinha ouvido falar, entretanto agora sabia que nessa rua, haveria uma loja, com uma marquise peculiar, com um letreiro que mostraria um nome familiar e lá, nessa rua num pedaço mórbido de mundo, encontraria seu irmão, há muito perdido.

Em outro continente, uma garota olharia para o céu estrelado e pensaria que aquelas milhares de estrelas juntas lhe pareciam agradável aos olhos e, então, sua mãe lhe chamaria, pois o noticiário da TV anunciava que no dia seguinte iria chover... A garota então, lamentaria-se de ter perdido seu guarda-chuva e que era absolutamente incrível a capacidade de boa parte da humanidade em perdê-los nos lugares mais impensáveis possíveis. Antes de dormir, no escuro, provavelmente tropeçaria na lata de lixo de seu quarto e xingaria de um nome bem terrível e, porque, afinal de contas, essa lata não poderia ficar no lugar em que lhe era devido? No canto menos iluminado do quarto, porque ninguém gostava de ficar olhando para uma latinha de lixo, que era um objeto pobre e decadente, embora, ela não admitisse, sempre lhe era útil.


///Ok. Viagem total. Mas quem se importa?

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